segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Água fria no rosto e um bom amuleto

Era um belo dia, um daqueles em que a gente acorda atrasado, mal humorado e com uma vontade de mijar desgraçada. Se eu demorasse um pouco mais para acordar, com certeza teria me molhado. Levantei da cama com a cara péssima e fui até o banheiro. Quando estava saindo, com o cabelo mal penteado e os dentes mal escovados, pensei: “Porque eu faço tanta questão de chegar no horário a esse emprego? Na primeira oportunidade sou pisado, humilhado... E nem tenho a desculpa do salário para estar lá. Na verdade o salário seria um bom motivo para eu me demitir. Será que sou masoquista?”
Acordo do meu transe de lamentações com o barulho da água fervendo. Um café talvez me faça bem. Correndo eu tomo o café e como duas bolachas Cream Cracker. Não sinto gosto de nada, acendo um cigarro e caminho até o ponto do ônibus que chega antes do fim do cigarro. Acho bom e péssimo.
Dentro de um coletivo encontramos tudo que alegra, enlouquece, amedronta e mata de ódio um ser humano. Esse não foi diferente.
Duas mulheres paradas em frente a catraca atrapalham a minha passagem. Até que são educadas, não precisei pedir licença duas vezes para elas deixarem o cainho livre. O cobrador se sentia o máximo com a atenção de duas mulheres só para si. Duas que na verdade não dariam uma canela bonita se juntassem as qualidades de ambas. Mas isso é uma questão pessoal, talvez o que importe para ele seja apenas a ausência do elemento pênis.
Eu fazia de tudo para não escutar a conversa deles. Mas não adiantava.
- Olha, essa aqui arranjou um namorado de dois metros de altura.
- É mesmo? – Disse o cobrador interessadíssimo no assunto.
- Ele é lindo. – Disse a dona do namorado.
Tudo bem que ela estava feliz com um namorado de dois metros de altura. Mas era realmente necessário eu ficar sabendo disso?
Por um milagre divino, desses do tipo “transformar água em vinho”, uma pessoa se levantou e eu consegui me sentar. Não era uma bela garota que estava ao meu lado. Mas me contentei com a companhia de uma senhora séria e um tanto calada Era uma viajem normal, dentro dos padrões. É claro. Muita gente apertada, falando alto, mulheres levando seus filhos com amidalite ao médico, os filhos com amidalite vomitando, piadas pornográficas em voz alta, comentários sobre futebol... E a mulher do meu lado, muda. Que benção. Gostaria de estar para sempre ao lado dela, até me casaria com ela. Mas ela estava de aliança. Homem de sorte esse. Será que ela é muda. – pensei. Achei melhor não falar com ela, há pessoas por aí que só esperam uma palavra, um mísero sinal de receptividade para contar suas vidas inteiras.
Durante o percurso o ônibus foi esvaziando e muitos lugares ficaram vagos. Inclusive as tão cobiçadas janelinhas. Mas eu estava muito bem ao lado da minha amiga muda.
Um homem com cara de quem bebeu quando deveria ter dormido sobe no ônibus acompanhado de uma mulher com a cara tão ruim quanto a dele. O homem paga a passagem e os dois se sentam nos últimos bancos.
Os dois começam uma discussão em voz baixa. Essa eu faço questão de escutar. Mas não consigo entender nada. Subitamente ele saca uma arma e grita:
- Foi você quem quis assim!
- O motorista para o ônibus, algumas pessoas gritam, correm... A senhora silenciosa se levanta rapidamente resmungando alguns palavrões e desce do ônibus. E eu sempre pensativo: “Esse cara vai matar essa mulher e todo mundo vai assistir. Vai ser uma festa do jeito que o povo gosta. Mas porque, diabos ele pagou a passagem dela? Será que os homicidas personagens em potencial de Nelson Rodrigues costumam ser gentis com suas vítimas alguns minutos antes do ato?”
A mulher não tinha o menor medo:
- O que você vai fazer? Vai me matar? Porque se for, faça logo. Não pense muito, você pode desistir.
Me impressionei com a frieza da mulher. Depois disso, o que o cara poderia fazer? Tinha que atirar. Ou não. Ou se conformar que era um frouxo.
Desci do ônibus e tomei uma preciosa decisão. A decisão de não ir trabalhar, de ir para casa dormir. Enquanto eu me afastava, ouvia o barulho do homem apanhando e de outros homens gritando coisas como:
- Você bate em mulher. É? E em mim, você não bate?
Atravessei a rua e me sentei em um ponto de ônibus. Acendi um cigarro e logo o ônibus veio. Mas preferi terminar o cigarro.
Quando todos já haviam afirmado suas respectivas hombridades, pararam de bater no homem e se viraram dizendo coisas do tipo:
- E que isso lhe sirva de lição!
A mulher o abraçou e cuidou dele ali mesmo. Era algo realmente romântico.
Peguei o ônibus e fui para casa. Nunca mais vi a senhora silenciosa.

Um comentário:

  1. Muito bom esse conto, Bruno! Você está cada dia melhor, adoro ler o que você escreve. Parabéns!

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